Capitania ou Autonomia?, por Elisabeth Zorgetz
Tenho uma tia, muito velha, que sempre diz: o mal do ilheense veio nas caravelas! Nunca dei muita atenção, relutei muito em discriminar nativos e forasteiros. Nos últimos dias, no entanto, essa observação me veio como uma ferroada. O ilheense, como todo gentílico, é dotado de peculiaridades e muitos detalhes simplórios. Há aquele ilheense artista, modesto, brilhante, oculto entre os sobrados. Há também o ilheense sisudo, com sua barba exótica e sua língua venenosa. Há o generoso, austero trabalhador, leitor de cabeceira. Aquele um pouco doido, sempre ofegante e sagaz. Aquela beata, imersa em pudores e defeitos. O político profissional, que se desloca entre mandatos do banco da praça para o plenário. O ilheense comissionado e o ilheense concursado. O ilheense com o rei na barriga e o ilheense bisneto de escravo. Há tantos de nós! Há, inclusive, aquele ilheense que repudia minhas palavras e crê, energicamente, que uma jovem historiadora não tenha capacidade de falar de coisa alguma.
Teimosa como sou, aceitei a idéia da minha tia e fiz esse retrospecto. Ele explica, inclusive, por que sofre tanto o comércio em Ilhéus, e, acreditem, a culpa não é do movimento social. O momento é a estabilização dinástica após a Restauração dos Bragança, em Portugal. A concentração do poder da aristocracia fisiocrata e de títulos definia as relações entre as demais camadas sociais. É preciso se ter clara a conformação da sociedade ibérica, onde as hierarquias ainda são concebidas pelo ideal do estamento, e não como classes. Ao contrário da classe, no estamento não vinga a igualdade das pessoas – o estamento é, na realidade, um grupo de membros cuja elevação se calca na desigualdade social. O modo indireto, se assim podemos dizer, de assegurar vantagens, prestígio, abonos, isenções e emolumentos era uma prerrogativa da nobreza. Muitas vezes, apenas a parte dela que dispunha de recursos. A fixidez de uma sociedade dividida entre um passado medieval e a sombra do início da modernidade criava a grande contradição ibérica, sobretudo lusa, onde as polaridades se mostraram ainda mais evidentes. À mentalidade mais tradicional e barroca, existia uma oposição aos valores burgueses, que estavam em ascensão em diferentes sociedades européias, e que enfatizavam a economia, a austeridade e a simplicidade. Existia uma forte resistência, sobretudo nesse momento, à ascensão de outras camadas sociais. Perante o progressivo alargamento dos estratos terciários urbanos, a correspondente ampliação do conceito de nobreza fazia correr o risco de uma total banalização e descaracterização deste estado, quando o que era visível era a preocupação de um reforço da estrutura hierárquica e nobiliárquica da sociedade. Os critérios sociais definiam que os negociantes estavam abaixo dos que praticavam as sete artes mecânicas (camponês, caçador, soldado, marinheiro, cirurgião e ferreiro), e eram vistos como intermediários e parasitas. Provavelmente, esse diagnóstico reflete muito mais a incapacidade da sociedade medieval ao lidar com a formalização de um novo ofício, do que o preconceito propriamente dito.
No Brasil, a mobilidade social era mais permeável, de modo que comerciantes, advogados e funcionários régios poderiam alcançar status e riqueza, mas a depreciação pelo trabalho manual poderia ser ainda mais grave do que na metrópole. A ênfase na hierarquia baseada no escravismo obscureceu a importância do defeito mecânico como valor negativo de distinção social, que permaneceu como estigma ao longo de toda a colonização, definindo identidades sociais e delimitando o acesso à condição de nobre. Os movimentos de ascensão não objetivaram a criação de novos tipos sociais, e sim a contínua busca à equidade com a nobreza ou, ao menos, com seus hábitos e modos, por ser a única alternativa possível para desfrutar de privilégios à regra dos estamentos. Os privilégios de um nobre no Antigo Regime português constituíam a isenção de tormentos, prisão especial, foro privilegiado com direito de apelo aos tribunais superiores e ao rei, isenção de penas vis como açoites e o direito de andar armados, usar sedas e ornatos de ouro e prata, isenções fiscais, e ainda o total usufruto de algum posto oficial que recebesse. E para se identificado como nobre e ter direito às prerrogativas citadas, era natural que usassem montaria, tivessem serviçais à disposição, demonstrassem refinamento de maneiras e costumes, tal como a leitura e escrita. Através desse modo de distinção social o pretendente a nobre poderia ser identificado como um “homem bom”, pessoa de mor-qualidade, ao contraste com os peões. O negociante aspirasse elevar-se socialmente deveria estar ligado em diversas atividades com interesses na exportação e importação, tal como a navegação e o tráfico de escravos, propriedade de terras e pecuária de grande porte, especulação imobiliária, arrematação de cobrança de impostos, obter postos militares e ofícios burocráticos. Entre suas relações citadinas, o dono de uma loja ‘de porta aberta’ deveria distanciar-se das atividades manuais, criando, se possível, uma casa comercial de ‘grosso trato’ e associando-se ao empréstimo de dinheiro.
Podemos inferir que entre o modelo social Português e o Brasil colonial haviam diferenças quanto à identificação do individuo nobre. No Brasil, e ainda com mais saliência na Bahia, o conquistador, os funcionários régios, e ainda, aqueles empenhados na restauração da capitania, apropriaram-se da qualidade de homens bons, quaisquer fossem suas origens econômicas e sociais em Portugal, contanto que provassem a limpeza de sangue. Certamente, em Portugal, a condição de nobre ainda era válida a reconhecidas famílias aristocráticas e ligadas ao poder real. O modelo baiano propunha certa ilegalidade social, mas legitimava a divisão estamental, provavelmente incitando as investidas de comerciantes reinóis a se igualar à nobreza da terra. A luta dos comerciantes para serem aceitos enquanto elite traduz o anseio de integração social e não apenas a partilha de vantagens, evidente desde a primeira caravela que aportou no ultramar atlântico.
A fluidez da moldura institucional do império português deixa vaga qualquer tentativa de estratificar os limites de jurisdição, poder ou influência que cada camada social dispunha. Se aceitando que a transferência cultural, social e legal entre Portugal e a colônia brasileira eram inegáveis, principalmente por se valer diretamente de reinóis, é evidente que a situação de incertezas sobre a autoridade teve um efeito ainda mais frouxo na colônia, onde as localidades e suas famílias há muito instaladas adquiriam autonomia. O valor da noção do exclusivismo baiano foi acentuado pela sua origem mais fidalga e o peso da elite agrária, diferentemente das outras capitanias, onde a corrida do ouro já havia flexibilizado potencialmente a organização social em busca do resultado econômico. Não se concebia o espaço colonial brasileiro como uma unidade, pela ótica baiana, e, além disso, não havia nenhuma racionalidade unificada em prol da independência, que aconteceria em algumas centenas de anos só no grito, despida de alterações reais na estrutura política brasileira.
O que nosso passado tem a dizer sobre a Ilhéus que conhecemos hoje? Tudo. Nos faltam, dramaticamente, as revoluções. Sem elas, somos a carcaça travestida de vãs modernidades de uma colônia lusitana e seus medievais poderes.
A autora Elisabeth Zorgetz é ilheense, membro do Coletivo Reúne Ilhéus, escritora e graduanda em História na UFRGS. É membro do Núcleo de História da Dependência Econômica na América Latina e trabalha a prospecção de estratégias focais de reforma agrária no sul da Bahia.